ESCOAMENTO DE ÁGUAS PLUVIAIS: COMPORTAMENTOS E RESPONSABILIDADES

O começo do dia era marcado pelo passo firme de Seu Zé ao apontar na esquina da rua. Caminhando de forma elegante enquanto equilibrava um grande balaio na cabeça, ele fazia despertar os moradores com sua voz de locutor que gritava padêêêêêêroooooo. Todos corriam para a porta de casa com seus sacos de pano para comprar o delicioso pão para o café da manhã.

Aquela rua era semelhante a outras do bairro Glórias, sem asfalto ou mesmo calçamento, naturalmente pavimentada com cascalho ou apenas terra batida. Os moradores já acostumados com a poeira e areia trazidas pelo vento, tinham janelas sempre fechadas e não contavam com serviços comuns como coleta de esgoto ou de lixo, restringindo o “luxo” aos pequenos confortos proporcionados pela rede de água e pela fossa séptica cavada no fundo do quintal. Era comum a separação do lixo orgânico para a feitura de compostagem que adubava e mantinha enriquecido o solo onde floresciam verdes plantas e pequenas hortas. Nas compras na feira e mercado utilizavam-se sacolas de palha ou feitas de sacos de açúcar ou farinha reaproveitados e re-costurados; o lixo sanitário era queimado no fundo do quintal e o que não podia ser enterrado ou queimado era acondicionado em sacos, carregado por duas quadras e colocado em uma esquina por onde passava semanalmente um carro de coleta.

O bairro simples e tranquilo abrigava trabalhadores de diversos setores de atividade que diariamente saiam de casa para uma outra realidade, de asfalto nas ruas e trânsito mais intenso de veículos, no centro da cidade e bairros mais ricos. Nestes a coleta de lixo era frequente e não poderia ser diferente pois as lojas produziam uma infinidade de resíduos (plásticos, orgânicos, papel, vidro etc) que não suportariam o acúmulo por longos períodos em razão da falta de espaço e da necessidade de manter condições mínimas de higiene. Muitos passavam nos ônibus e carros e jogavam distraidamente embalagens de doces e pipocas pelas janelas dos veículos, mas a varrição semanal e o vento cuidavam de evitar o acúmulo nas ruas empurrando pequenos descartes pelos bueiros.

Paradoxalmente, os moradores das Glórias que ali trabalhavam comportavam-se como os demais, sem se aperceber da contradição entre os hábitos desenvolvidos e praticados em suas casas e aqueles praticados no centro da cidade. Os efeitos dessa contradição não eram percebidos em virtude da até então suficiente infraestrutura de serviços.

Com o passar dos anos, pouco mudava no município apesar do crescimento populacional em modestas taxas. E com o tempo, de forma silenciosa e invisível aos olhos da população, sacos e garrafas plásticas, embalagens diversas de doces, chocolates, pipocas e biscoitos, entre outros, além de latas de cerveja e refrigerante e pontas de cigarro acumulavam-se no fundo dos bueiros dificultando cada vez mais a passagem da água da chuva que buscava o escoamento. A degradação dos resíduos sólidos não acompanhava o ritmo da reposição e nos períodos de chuva percebiam-se poças cada vez maiores junto aos passeios com a água buscando seu caminho de escoamento.

E finalmente aconteceu. A previsão do tempo alertava que as mudanças climáticas trariam um inverno de chuvas constantes, embora não muito forte, levando a população a pensar que seus problemas estariam restritos ao excesso de umidade e ao inconveniente guarda-chuva em uso prolongado. Entretanto, foi o não visto o causador de maiores transtornos. Com a chegada da chuva em níveis moderados, mas constantes, os canais de escoamento revelaram-se como insuficientes para desempenhar as duas funções: acumular pequenos descartes e escoar a água. Papel, plásticos, latas que inicialmente dificultavam a passagem da água, depois de 1 semana de chuva revelavam-se como obstáculos quase intransponíveis. A água ia acumulando no asfalto e o enchimento dos bueiros expulsava os seus “moradores”, notadamente ratos e baratas, acompanhados de pequenas embalagens e copos que retornavam às ruas. Ao final de duas semanas a chuva não cessava, mantendo-se frequente e modesta, mas extremamente prejudicial para o centro da cidade; a água suja e cheia de doenças invadia as lojas e causava transtornos e prejuízos ao patrimônio e as pessoas.

E novamente revelam-se as contradições entre o centro da cidade e o tranquilo bairro de Glórias. Sem asfalto, calçamento e sem bueiros a chuva infiltrava no solo de forma lenta e gradativa. Não havia lixo a ser transportado ou ratos e baratas “expulsos” de suas moradias. A água em excesso corria naturalmente por pequenas e desimpedidas valas que garantiam o breve acúmulo que antecedia a lenta absorção pelo solo. O contraste era gritante: enquanto o asfaltado centro da cidade permanecia inundado, o bairro de Glórias vivenciava um inverno chuvoso, mas de poucos transtornos.

Uma observação rápida e descuidada de alguns aspectos induzia ao entendimento de que a culpa seria da modernidade da infraestrutura, enaltecendo assim o rústico, o arcaico e o deficitário saneamento. Contudo, Seu Zé que de longe vinha para vender seu pão na Glórias e com o dinheiro arrecadado comprava mantimentos e utilizava serviços no centro da cidade observava atentamente a situação. Com uma educação tradicional e à moda antiga Seu Zé ouvia calado os amigos moradores de Glórias que ele encontrava no centro da cidade, reclamarem da falta de eficiência dos serviços públicos de manejo de águas pluviais, enquanto jogavam as pontas dos cigarros nervosamente fumados e os copinhos de café no asfalto submerso. Depois da observação atenta, já em casa, Seu Zé conversava com sua família e falava sobre exemplos e responsabilidades individuais e coletivas. E a chuva continuava modesta, mas incessante.

A reflexão de Seu Zé e de sua família girava em torno de questões simples, mas de respostas complexas:

  • Qual a responsabilidade dos cidadãos diante da situação?(leia mais)
  • Qual a responsabilidade do poder público?(leia mais)
  • Quais as discussões ambientais implícitas aos eventos?(leia mais)

Atribuir responsabilidades e assumir responsabilidades são ações que demandam esforços distintos, com impactos individuais e coletivos que podem ter efeitos em prazos ou escalas também distintas. Dessa forma, esse pequeno texto propõe a reflexão acerca de pequenos gestos do dia a dia de todos nós.(acesso aos textos em pdf)

Telma Teixeira - RHIOS 
 Setembro de 2017

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