USOS MÚLTIPLOS E CONFLITOS EM BACIAS HIDROGRÁFICAS

Imagine dois piscicultores que cultivam seus peixes em tanques-redes em um mesmo curso d’água, alimentando-os com ração e sobrevivendo desse cultivo. Eles convivem em harmonia e quando se encontram no mercado da cidade dividem uma garrafa de bebida depois da venda dos peixes, conversando sobre os filhos que estudam na mesma escola, sobre os ensinamentos dos seus pais, também piscicultores e outros assuntos do dia a dia. Pedro e André, esses são os seus nomes, moram em uma pequena vila do município de Bastança que tem pouco mais de 70 mil habitantes que vangloriam-se da boa vida, da qualidade da água que permite a todos uma boa saúde e da rica natureza que os cerca.

Pedro e André moram em um país em crescimento, embora não partilhem dos interesses tecnológicos e crescente demanda de energia que se observa nas grandes cidades. Juntos com os demais habitantes do município de Bastança eles privilegiam o ambiente natural mais que os confortos da modernidade.

Um dia, em decorrência das maiores exigências e crescimento nos centros urbanos, o governo identifica o rio onde estão instalados os tanque redes de Pedro e André como a localização ideal para a construção de uma barragem e implantação de turbinas para geração elétrica. No pequeno município de Bastança a população fica em polvorosa. Parte da terra será inundada para a construção da barragem e por conta disso o município receberá uma renda na forma de compensação financeira que corresponde a um percentual da receita gerada pela eletricidade produzida. Com esse dinheiro extraa prefeitura vislumbra possibilidades de melhorar os serviços de saúde e educação do município trazendo mais modernidade nos cuidados em enfermidades e melhor preparando suas crianças para o futuro.

A usina também vai gerar emprego, aumentando a renda da população local, permitindo o crescimento da pequena Bastança e ampliando a rede elétrica na área rural. A negociação e os acertos transcorrem ao longo de alguns meses, sem grandes objeções da população visto que a terra a ser inundada é pouco povoada e o preço proposto para a compra destas é estabelecido muito acima do preço de mercado. Assim, todos comemoram e Pedro e André partilham dessa esperança comum de crescimento para todos.

As obras se iniciam e são concluídas em um prazo de 05 anos. Durante esse período os habitantes da vila em alguns momentos mostraram-se arrependidos e tristes e em outros novamente felizes e esperançosos. Muitas pessoas chegaram à cidade, vindas de municípios vizinhos menores e mais pobres que Bastança e por conta das obras, em pouco tempo o trabalho já era encontrado. Pedro e André vendiam peixes como nunca. O comércio crescia e a prefeitura trabalhava em dobro para garantir uma boa infraestrutura para todos.

A barragem é então construída num trecho do rio entre Pedro (a montante) e André (a jusante). O lago de água da represa se forma e Pedro aproveita para colocar mais tanques-redes e aproveitar a produção. André, por sua vez vê reduzir o volume de água e percebe que não teve a mesma sorte. A usina começa a operar a pleno vapor, fazendo uso da força da queda d’água para mover as turbinas e gerar a eletricidade, garantindo assim o pagamento da compensação financeira à prefeitura. Com o funcionamento, a água passa em maior velocidade e Pedro percebe que isso aumenta o seu custo com a ração e reduz a sua produtividade. André comemora, pois o fluxo é um pouco menor depois da barragem e ele novamente pode produzir. A cidade cresce e amplia o espaço urbano aumentando também as exigências nas infraestruturas de saneamento. Algumas residências passam a surgir de forma irregular na zona ribeirinha e por conta dessa falta de planejamento e controle não tem acesso à rede de água e esgoto, então cavam poços para usar água subterrânea ou captam diretamente do rio e lançam o esgoto in natura também diretamente no rio. Além destes, pontos outorgados de captação de água são instalados para atender a crescente demanda populacional e outros pontos de lançamento de esgoto acompanham o quadro. Ao longo dos dias torna-se cada vez mais evidente o descontrole quanto a disponibilidade e qualidade da água.

Os anos passam e o panorama se transforma. A área desabitada onde foi construída a barragem abrigava a vegetação que parcialmente garantia a disponibilidade hídrica. Os eventos mundiais de mudança climática ocasionam estiagem obrigando a usina a reduzir a vazão para garantir estoque de água para produção de eletricidade. Mas o lago da represa não tem mais a qualidade do passado. A expansão populacional e maior lançamento de esgotos provoca poluição comprometendo a irrigação daqueles que captam diretamente do rio e de Pedro que observa o benefício de águas mais calmas negativamente compensado pela poluição que estas trazem. À jusante da barragem, a escassez é ainda maior, pois a água está sendo contida e o rio começa a secar. André sofre diretamente com o menor fluxo de água que é também comprometido pelo lançamento irregular de esgotos.

Na cidade, a prefeitura perde a receita da compensação, afinal de contas essa só é paga quando a eletricidade é gerada. Os serviços básicos não conseguem assim se estender a toda a população que agora supera os 120 mil habitantes. Água encanada, coleta e tratamento de esgoto, coleta de lixo, creches e escolas, postos de saúde, segurança e iluminação públicas são serviços estressados pela excessiva demanda e falta de recursos para ampliação da oferta.

É então criado o comitê da bacia hidrográfica do Rio da Paz que engloba Bastança e outros 54 municípios. Piscicultores, agricultores, grandes irrigantes e diversos outros grupos de usuários devem então se reunir para diagnosticar a situação e estabelecer planos para o futuro da Bacia observando que as águas possam servir à todos garantindo assim os usos múltiplos resolvendo da melhor forma os conflitos observados.

Algumas das questões que se apresentam são:

  • Como estabelecer prioridades no uso? (ler mais)
  • Como o meio ambiente participa dessa disputa? (ler mais)
  • Como identificar e resolver os conflitos? (ler mais)

Esse pequeno texto apenas ilustra o que vem a ser a multiplicidade de usos em uma bacia hidrográfica e os possíveis conflitos existentes. Qualquer que seja a solução, esta envolverá perdas e ganhos para todos, no presente e/ou no futuro, por isso, todas as respostas estão certas e erradas. (acessar o texto em PDF)

Telma Teixeira - RHIOS 
24 de Junho de 2017

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